domingo, 19 de abril de 2009

Meu único cãozinho

Em toda a minha vida eu só tive um único animal de estimação. Um cãozinho. Era um cachorro de
rua, ou pelo menos foi na rua que eu o encontrei. Parecia muito novo, de um ano ou um pouco mais, não sei se isso é muito novo para um cachorro, não lembro direito como funciona os esquemas de idade de cachorro (acho que é multiplicado por 7?). De qualquer forma, ele, pequeno e elétrico, perambulava nos arredores da casa da minha avó no interior. Seu pêlo era branco e bem macio, com algumas manchas escuras pelo corpo, tinha um olhar alegre e puro. De cara nós nos entendemos muito bem. O cãozinho se mostrou muito simpático e afetivo e eu, um garotinho que precisa de alguma simpatia e afeto, logo o escolhi como meu predileto. Adotei-o como qualquer coisa que um ser pode ser para outro ser: amigo? filho? pai? um amor?
Carreguei-o no meu colo durante toda a viagem até a cidade, ele veio quietinho e ainda todo afetuoso. Senti que ele me entendia, parecia-se comigo, ao seu modo. Eu havia encontrado alguém que pudesse me entender e que eu entendia. Meu pai o deixou na casa da minha outra avó, já na cidade. Era uma boa casa, com um grande quintal de concreto cinza claro e muitas plantas, cercado por muros de tijolos quase vermelhos. Lá ele teria muito mais espaço para cachorrear do que se tivesse ficado no nosso apertado apartamento. Isso foi num domingo, no fim da tarde. Durante toda a semana eu não o vi. Só iria vê-lo de novo no próximo sábado. Estava muito ansioso, esse cachorrinho era realmente legal, despertava algo em mim que me era estranho e excitante. Naquele ponto eu buscava alguma identificação, pertencer e ter pertences, não objetos, mas vida, qualquer coisa que reagisse espontaneamente na minha frente. Algo que me conectasse com esse mundo estranho. Sempre busquei por isso e apenas isso. Minha vida toda seria uma eterna e cansável busca por isso.
A porta do quintal se abre e eu dou de cara com o pequeno, meu pequeno, aquilo que representava o que poderia haver de bom e genuíno entre todas as coisas, entre a vida a seguir, já devidamente determinada pelas regras a obedecer e certezas a se aceitar. O acordo foi que o cãozinho seria meu, todos poderiam brincar com ele mas, no fim das contas, quando tivessem que ligá-lo a alguma pessoa, quando tivesse que dizer “esse é o cachorro do fulano”; bem, esse fulano seria eu.
Estava muito feliz e ansioso, se tivesse um rabo estaria abanando-o loucamente como estava o pequeno. Eu, sorrindo, abaixei e ele, sorrindo, veio correndo em minha direção. Ele tinha um belo par de unhas. Estranho essas garras desenvolvidas em um cachorro tão pequeno. Aquelas unhas afiadas arranharam os meus joelhos de um modo como eles nunca haviam sido arranhados. Não estava esperando por isso. Realmente não esperava sentir aquela dor naquele momento. Eu estava me sentindo tão bem, uma sensação realmente boa e, de repente, aquela dor não prevista. Não prevista. Aquilo me deixou muito assustado. Antes que eu pudesse ter o cãozinho em minhas mãos, antes mesmo que eu pudesse sentir com a ponta dos meus dedos os fios dos seus pêlos, sentir que, enquanto durasse aquele momento, tudo estaria bem, antes de tudo isso, decretei sua sentença. A sentença do meu cachorro seria a morte. Pelo menos a morte para mim, já que não poderia mais vê-lo de jeito nenhum. Não poderia suportar a idéia que alguém como ele pudesse me machucar. Eu pensava em como ele pudera fazer aquilo, daquela forma, a mim. Não tinha sentido, depois de tudo que fiz por ele.
Sempre quando eu baixo minha guarda alguém me arranha de uma maneira inesperada. Como com o cão, no entanto, esse arranhado muitas vezes é acidental. Mas como diabos eu vou saber disso? Como vou saber se por detrás de uma figura doce não está um ser perverso que deseja causar a dor alheia? Como saber das intenções nunca totalmente explicitadas. Desentendimentos. Meu pai livrou-se do bicho na manhã seguinte. Não me senti bem com aquilo. Ainda pensava muito nele. Não entendi muito bem tudo aquilo. Não consegui digerir a coisa toda. Justo a mim? Senti-me traído, apunhalado pelas costas, dono de uma dor profunda que me apertava forte o peito. Nunca mais teria outro cãozinho ou animal qualquer.

O drama dos lampejos condicionados

Por que sou tão preguiçoso? Por que não realizo lampejos criativos objetivados, ou seja, por que não materializo meus lampejos criativos? Eu tenho os lampejos, sim, mas não faço nada para guardá-los e, como a memória não boa, eles se vão, como um pensamento fugidio, que de fato são. Por que não aproveito esses momentos e faço algo para salvá-los. Puta que o pariu por que da culpa?
Na escola, eu gostava muito das aulas de redação. Tinha um horário especial, previamente marcado, um tempo de duração estipulado, onde todos os meus lampejos criativos podiam ser objetivados. Agora, uma constatação foda: normalmente eles não vinham com a mesma intensidade – esse parece ser o drama dos lampejos, não tem hora marcada, não avisam – mas mesmo assim, eu me sentia realizado, de alguma forma. Parece que nessa programação criativa, nesse momento de criação monitorado, eu conseguia produzir alguma coisa. Maldito condicionamento. Regras e mais regras. Adoro mal dizê-las, mas quando elas funcionam... ah o que se vai fazer.Hoje, sem os momentos pré-agendados, não sei quando e onde devo escrever. Parece que o sistema educacional operário foi realmente efetivo para a minha criação. Só objetivo minha criatividade em oportunidades previamente acordadas, em espaços tacitamente pré-determinados para tais criações: salas de aulas; escritórios; e apenas nos momentos que me é designado fazê-lo. Sempre a mando de alguém ou para alguém. Matam a espontaneidade da LIVRE criação desde o início,... ou será que eu não sei ser espontâneo?

Qual é o cheiro de uma pessoa queimando?

Para cremar uma pessoa, é necessário um fogo intenso e contínuo. Como toda matéria de origem animal, a pessoa não é inflamável. O fogo a queima, mas uma simples chama não desperta uma labareda no corpo de uma pessoa. É preciso trabalho e persistência até depois da morte. Fogo laborioso desde as extremidades e partes mais frágeis até os miolos, partes rígidas e cheias de resistências e surpresas.
Por isso o caixão percorre a esteira fornalha adentro e ali ele fica por uns bons minutos. A boca da fornalha se fecha e a única saída da fumaça é pela chaminé. O fogo persistente consome caixão e pessoa como um só, cinzas indissociáveis, madeira e carne, ossos e pregos, fluidos. Pó único e escuro ao final. Certeza de que fogo impiedoso transformou toda a grandeza e complexidade em um único elemento: cinzas.
A carne animal tem um cheiro característico que identificamos quando nos aproximamos do churrasco. Dependendo do preparo dessa carne, ela terá um cheiro mais acentuado ou não, em função de algum condimento ou tempero. Os elementos que o fogo se utiliza para existir: madeira, fósforo, carvão, papel, ajudam a revelar o cheiro do fogo, também esse forte e característico. Sabemos que algum objeto pega fogo não muito longe do incêndio, graças à propagação da fumaça.
Numa cerimônia de cremação não temos acesso à fumaça, ela é direcionada para cima e para longe. Temos acesso, ao término, às cinzas, mas cinzas são cinzas e cheiram à cinzas e isso é tudo.Qual o cheiro de uma pessoa queimando?

18:35

Dez minutos sem ter o que fazer. Dez minutos sem ter. Dez minutos. Dez, minutos sem ter o que fazer. O que fazer em dez minutos. Fingir que faço alguma coisa em dez minutos é fingir que faço alguma coisa. Se fingir que faço em dez minutos, posso fingir que faço em meia hora, uma hora inteira com muita certeza. Fingir duas, três, quatro. Fingir por muito tempo. Fingir por tanto tempo. Fingir por tempo demais. Fingir, portanto, o tempo todo. Todo o tempo fingindo. Só saber fingir. Fingir pra enganar o tempo, enganando o tempo fingindo. E fingir mais. Faltam só cinco agora. Cinco minutos pra se fingir. Cinco minutos e então nada mais. Cinco minutos e sair. Como passa o tempo quando temos alguma coisa pra fazer enquanto fingimos. Já foram mais dois; agora só faltam três. Dois. Um. E agora sair. Sair para quê? Sair para fingir. Tudo de novo.

Como se pronunciar a sua fala

Do mote que se tem registro no duro cerne do impacto causticante com as minorias, percebe-se que quanto mais a pulga coça, mais ela torce o rabo. Isto posto, nenhum de nós sabe falar ao certo se fala ou não fala sobre a sua fala no papel mínimo que lhe dão na vida. Conseguiu uma só fala e mesmo assim não fala pra ninguém por medo de não saber a fala de cor. Medo grande, na verdade, de não saber direito como pronunciar a sua fala.

(sugestão de poema)

Na medida em que surge a necessidade extrema de externar os externos extremos das externalidades de escrever tamanha bobagem, fico com um tique de apetite de fazer qualquer coisa outra que não o ser. Pois o ser, caro ser, é muito chato, muito comum, muito sem porquê e por onde e porquanto. Portanto, limito-me a observar, ver, sentir. Sou não mais, somente deixo estar. E no deixe estar, deixo assim suspenso, leve no ar como a pluma-borboleta, a proposta do eu, eu pra você, eu pra eu, eu pros outros, eu que não caibo mais em mim por isso me expando, por isso flutuo, por isso observo, por isso não sou, por isso fico a ficar por isso.

Sobre o sono

O sono bate muito forte à tarde. Tão forte que a briga pessoal contra o sono, nas horas que se passam na frente do computador, podem ser comparadas com batalhas mordazes e cruéis. Haja em vista que o que se tem, nesse caso, é a briga entre mente e corpo, da pessoa-contra-sigo-mesma. Isso implica que, não importa quem vença a briga, você perderá; ou pelo lado do sono (constante tormento) e da sanidade vespertina ou pela perda da confiança que uma pessoa dormindo em cima do seu computador desencadeia para os chefes mais diretos. Em última instância, perde-se o emprego pelo argumento da preguiça. Mas com isso, ganha-se preciosas horas de sono a mais. Um sono pobre mas que, pelo menos, respeita o horário do seu corpo. E isso é dos fatores mais fundamentais para que o homem possa usufruir uma vida plena e melhor: o respeito por aquilo que é o conceito e a expressão máxima do que é e o que vem a ser um homem, por aquilo o qual é definível: seu corpo.

Sobre arte e reconhecimento

As pessoas ditas entendidas de arte só apreciam qualquer trabalho de natureza artística quando o dito artista fala exatamente o que essas pessoas cultas e preparadas ao longo de toda a sua educação em colégios caros estão querendo ouvir. Quando fazem referências que só os letrados dos mais caros colégios que compartilham toda a cultura elitizante e excludente da casta superior conhecem e propagam entre eles. É apenas mais uma regra social: compartilhe e conheça aquilo que algum entendido falou pra você que é bom; daí programe-se para gostar disso; daí divulgue você isso. Quando vir algum novo artista que fala uma língua cuja todas as referências você já conhece, então curve-se e cultue a arte revelada e divulgue-a também. O bom é subjetivo e, ainda, é o subjetivo condicionado, o subjetivo dos outros incrustado em você, é o subjetivo coletivo. Por que gostar de algo sozinho, o só você, não tem graça, não tem respeito, não tem conversa, não tem valor.