quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Sexta, Dez pras Dez

Até chegar a sexta-feira. Na sexta-feira os olhos não desviam do relógio, ansiosamente aguardando o esperado horário da saída. Salivam por imaginarem o gostinho da liberdade tão perto. Dois dias inteirinhos para se fazer o que quiser. Na verdade isso é uma mentira, elas não fazem o que querem, mas o que o resto da semana as obriga fazer no fim da semana. Mais compromissos, compras, preparações, tudo pra deixar tudo prontinho na segunda. E assim, no fundo, sexta emenda a segunda-feira, evaporando com os dois dias inúteis entre eles. Mas às 17h30 da sexta-feira ninguém pensa assim, porque os desejos só respondem às coisas que estão próximas a nós, ao que nossos olhos podem ver sem muito esforço de imaginação ou projeção futura. E às 17h50 quase se pode tocar a liberdade, tão densa e pesadamente ela cai do céu junto com o crepúsculo. E ah! 18h01 elas já saem dos prédios de escritório e se aglomeram nas calçadas para dar início ao ritual do fim de semana. O amarelo dourado estoura estupidamente gelado no fundo do pequeno copo de vidro e a espuma transborda, mas ninguém se importa, porque lambendo a beirada aproveita-se tudo, até a última gota. A substância desejada, o elixir do relaxamento, a bebida sagrada feita de sangue dos pobres mortais. Os que bebem são todo exagero. Não daria para ser diferente, depois de uma semana inteira de exageros: muito trabalho, muito cansaço, muito stress, muita propaganda, muita gente, muito trânsito, muita pressa, muito sono, muitas preocupações. Muito que se cura com muito. Não se cura, na verdade só se esquece. E quanto mais dos muitos se acumularam durante a semana, muitas doses mais de esquecimento precisarão ser tomadas na noite fervilhante da sexta-feira para que se possa dormir, finalmente, um sono pesado, o sono dos injustiçados.

Mas antes de chegar ao merecido descanso, é preciso passar pelo purgatório da agitação. Mais pessoas, nas mesas que já se multiplicaram e invadem todos os espaços possíveis. Mais carros que surgem de todos os cantos e entopem a rua já cheia de gente. Os sons se amplificam e se fundem. O copo que quebra, a gargalhada que estoura, o palavrão que explode, o falar que grita, a buzina que rasga, todos se juntam para formar a sinfonia da sexta-feira. A sinfonia do turbilhão e do caos premeditado.

Viro a esquina e tudo me acerta de uma só vez, como um poderoso golpe inesperado.

Casa com essa menina, porque coisa melhor não vai conseguir. Olá, olá, tudo bem com você, gatinha? Ei! Cuidado comigo. Os skatistas pulam para cá e para lá em suas manobras, perdendo dos seus pés os skates que, correndo sozinhos, vão para longe até atingir alguém que passa por sobre a passagem de ranhuras que é o braile para os pés dos cegos. A moça de calças cinza apertada gargalha para o guarda que se mantém esticado dentro do seu uniforme cinza e cada vez que a moça gargalha a calça aperta um pouquinho mais e todo o seu volume transborda na barriga, mas o guarda mantém a vista para cima, só de vez em quando olha para o volume saindo da calça para não perder o hábito. Uma espécie de luz neon verde ilumina os cabelos loiros que ficam verdes da menina que ri e seus dentes estão verdes e ela nem desconfia disso pela forma que sorri para todos os que passam por ela na rua. Dois maços e uma revista são nove reais. Só mais cinqüenta centavos para eu interar dois reais e minha cachaça. Eu quero dar! HAHAHAHA. Daí eu falei pra ele: quem é que veio até aqui por sua causa e depois de chegar aqui é dispensada, não você não entendeu que o cara quer só dois e duzentá então o que eu vou fazer hoje se você não tá a fim de sair? Vou ficar em casa queném um idiotalvez ele quer mais do que aquilo que você está dando. Eu não sei, porque eu já tentei coisas diferentes, mas nada deu certo. Mas isso não é nem um pouco justo. Tenta acender o cigarro, o isqueiro só produz faísca e quando faz fogo, este logo se apaga. A luz do farol se acende. O carro quase não consegue passar, embora o sinal esteja verde pra ele, as pessoas passam como se dissessem: olha aqui! eu já esperei demais a semana inteira, agora é a sua vez, você confortavelmente sentado no seu banco macio pisando em pedais pra cima e para baixo, enquanto eu tenho que gastar minhas solas e tropeçar em tudo quanto é buraco dessa cidade, agora é minha vez, exatamente aqui, exatamente nesse momento, você pode passar por cima de mim e me transformar em lixo de asfalto, mas eu não vou esperar mais, não agora, então é eu contra você, o que você me diz? E o carro espera e a senhora que o guia apenas saiu de casa para fazer a compra no supermercado e apenas por isso ela saiu de carro. Uma reunião de crianças que se acham adultos apenas por beberem e fumarem, um pouco sem jeito, por se agarrarem na rua sem pudor e por vestirem pesadas roupas pretas com cheiro armário. Apesar das caras de mau, suas falas não passam de banalidades. Banalidades e bebidas. É tudo o que as pessoas precisam para sobreviverem em bando. Gritam e provocam quem passa pela rua, mas alguns só olham um olhar perdido para Deus sabe onde e suas caras neutras denunciam que prefeririam estar em outro lugar agora, mas o que se vai fazer, é sexta-feira e essas são as pessoas com quem eu convivo e o que resta é agüentar e torcer para que algo de bom aconteça hoje, algo novo e excitante. E todas as pessoas pensam isso na sexta à noite, mas isso não acontece para a maioria que apenas segue a vida esperando a sexta-feira dos sonhos que nunca chegará porque elas esperam coisas demais e tem coisas que nunca acontecerão. Mas enquanto tudo isso é novo para aqueles que sentam e bebem na calçada, eles vão rindo e falando alto para que toda a cidade escute seus uivos, pois a vida para eles está apenas começando e eles estão sedentos por ter aquilo que todos os outros já não querem mais. Mas eles não sabem disso, ainda. As três amigas apoiadas no balcão dentro do bar olham para todos os lados, disparam seus olhares e decotes para todo transeunte e bêbado e louco, provocando os seus nervos e despertando todo o seu desejo até o momento em que elas irão embora deixando muitos queixos caídos para trás. Deixando todos babando e rindo por isso. Rindo muito por isso. Elas conchavam entre cochichos ao pé do ouvido e risadinhas. Combinam exatamente a hora em que sairão do bar com destino a alguma outra festa que já começou em algum canto da cidade. A hora em que os lobos se distraem um instante para coçar as suas partes quando a lua está brilhando para elas. Uma fuga rápida bem nesse instante e os lobos nunca saberão o que aconteceu. Ô boneca! Vem aqui um pouquinho, deixa eu te falar uma coisa. HÉHÉHÉHÉ. Ô princesa! Senta aqui, eu não vou te morder, eu prometo. A menos que você queira. HAHAHAHAHA. Garçom! Traz mais uma garrafa pras garotas e coloca na minha conta. RIRIRIRIRI. Ai, eu preciso dar uma chegadinha no banheiro, mas eu já volto já. HU-HU-HU-HU. A caminhada cambaleante. Faz força para andar em linha reta. A vontade sempre aperta quando abrimos a porta do banheiro e explode quando abrimos a calça. O jato transparente apenas em breves momentos acerta o buraco da privada, apesar de ser tão grande. O jato forte sempre pega de surpresa aqueles que têm a calça semi-arriada. Até poder controlar essa força, metade da vontade já se foi e agora está espalhada na poça das outras vontades aliviadas que molha os sapatos e um pedaço da barra da calça. AHHHHHHH. De repente o mundo parece um lugar tão bom e cheio de possibilidades. Mas que porra, onde é que foram aquelas três safadinhas? Então, eu acho que no fundo é isso mesmo, sabe. Eu falei pra ele que, assim, não dá pra fazer tudo o que ele quer, sabe, porque eu também preciso fazer as minhas coisas, entende, e isso é muito importante pra mim, né, e parece que ele nem, sabe, se toca. Para. Risca o isqueiro pela 27ª vez que insiste em faiscar apenas. E ela se posiciona contra o vento, a favor do vento, em todas as posições, mas parece que o vento vem de todas as direções. O cigarro já grudou na boca. Ela continua falando e ele não cai. Ai, meu, sei lá vocês dois. Rola uma coisa meio esquisita dele que eu não sei te falar exatamente o que é... A perua avança o sinal vermelho e, na faixa de pedestre, para e grita para fora da janela. Olha a calçada! O da calçada xinga inevitavelmente a Kombi que avançou o farol. Mas segue caminho sem muito esquentar a cabeça. Apressada, a bixinha anda depressa, rebolando o seu quase nenhum quadril e sorrindo para todo mundo que passa e lhe olha. Inda tem que agüenta os viado olhando pra mim direto. Resmunga o pedreiro gesticulando com suas mãos sujas e ajeitando sua camiseta rasgada. E tsssc tsssc tsssc nada do isqueiro funcionar. Você tem um isqueiro pra me emprestar? Não. Brigada. Pergunta praquele cara parado ali ó. Oi, você tem um isqueiro pra me emprestar? Claro que eu tenho. Ainda hoje as pessoas sorriem e se inflam de expectativas com o lance do isqueiro. O rapaz de gravata afrouxada e camisa pra fora da calça larga sorri e encara a garota que só olha para a ponta do cigarro e o isqueiro do rapaz que fez questão de acender o fogo para ela. O fogo queima a ponta, ela diz “brigada” e sai andando no mesmo passo apressado e curto de antes, sem olhar para o rapaz que há 30 metros de distância ainda olha para ela e sorri, mexendo com os pés de um lado pro outro enquanto termina seu cigarro e com a mão esquerda dentro do bolso cutuca a cueca. Da igreja saem pessoas em seus trajes de gala a caminho da festa. Carros grandes com os vidros totalmente escuros perfilados à espera dos seus donos de gravatas apertadas e lenços de lapela com suas esposas em vestidos que brilham, saltos finos que estalam fino ao andar e maquiagem pesada que não consegue esconder as marcas da idade. Na esquina, um homem alto toca um triângulo e balbucia uma cantoria de palavras desencontradas que não chegam a formar um verso e se repetem como se o homem dissesse todos os maiores desatinos que lhe passam pela cabeça aos quatro ventos que se encontram na esquina das duas ruas. E o som do metal rasga o encontro das ruas em um ruído insuportável que nem a caixa de papelão vazia aos seus pés pode mais suportar. E as pessoas passam e olham feio para o homem alto que devolve palavras desafinadas com uma expressão séria no rosto como quem está concentrado para não errar o compasso, mas um triângulo não exige muito compasso ou concentração no movimento, mas ele parece não se importar com isso. O cigarro apagou! QUA-QUA-QUA-QUA. Volta lá e pede praquele cara de novo, acho que ele gostou de você. É, vou sim. Tá amassado esse cigarro, e meio molhado, deixa quieto. Ela não larga o cigarro da mão. Um casal olha o varal cheio com camisetas de temáticas variadas à venda. Não acho que Foucault tenha dito isso, realmente, acredito que é uma interpretação errada da leitura que fazem da sua obra, especialmente quando se referem ao que tipo de coisa que você imaginou? Aquele jogador é muito ruim, não consegue sair com a bola dominada parece com que coisinha mais linda aquela ali, olha só que peitinhos, durinhos e ainda dá pra ver o sutiã! Dá pra ver que o presidente agora se afundou de vez, não bastava aquele monte de denúncias que saíram contra ele na semana passada, hoje saiu uma no jornal, dizendo que esse filme novo foi vaiado e aplaudido em Cannes e que o júri só não premiou como melhor filme por causa do diretor que arrumou uma confusão com batata e carne seca, sabe, aqueles bolinhos que vem de entrada, mas o melhor deles são os pastéis de carne. A fumaça da barraca que vende milho joga um cheiro de pipoca na passagem estreita e encobre os olhares inquisidores dos que vão de lá pra cá. Um carro rasga a avenida com o grito do motor e o grunhido dos passageiros. Mais pessoas vão chegando. Garotas arrumadas e perfumadas, garotos penteados, vestindo casacos de couro com golas altas da moda e calças apertadas. Todos andam rápido com seus olhares leves e sorrisos fáceis. Andam sempre em grupo todos, sempre na direção contrária a minha. Me arranja uma moeda? Só uma moeda! Grita o vagabundo. O homem que já viu isso um milhão de vezes e ainda continua vendo, todas as sextas de todas as semanas por toda a eternidade. Xingando todos que interferem o seu caminho, cuspindo no caminho dos que riem, amaldiçoando os céus por ter falhado na única oportunidade que teve na sua vida, flutuando por sob o concreto das ruas como um messias moderno anunciando que o fim de tudo virá em breve. Resmunga para si palavras balbuciantes que só ele e Deus conseguem entender. Seus olhos de loucura já viram de tudo, seus ouvidos sujos já ouviram todas as estórias que tinham para ouvir e agora ele está farto. Quer apenas um lugar para se sentar e descansar até o dia do juízo final. Mas ainda não, porque ainda é sexta-feira, dez pras dez.