sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Pôr-do-sol do Natal

Na Avenida repleta pelas multidões de famílias, onde tudo acontece e tudo passa desapercebido, O coral do banco canta. A faixa de ônibus é bloqueada pelos homens que cuidam do trânsito para que possa acomodar melhor os assistidores do espetáculo. Luzes e Árvores e Neve e Cores (tons vermelho e verde / sócio-ambiental). Os olhos das crianças se movimentam rapidamente sem respirar para não perder o bombardeamento de imagens. A música aumenta ao som do playback mono repetindo em muitas vozes: “i need somebody to love”; “i need somebody to ...”; “i need somebody”; “i need!”. Velhos e jovens sorriem tirando fotos, eternizam o momento feliz. Do alto da lixeira de concreto, a criança espicha e tenta entender o que a criança nos ombros do pai ignora.

Noite Feliz = Muitas Sacolas

Ó Senhor = Compra e Venda

Nas mesas que ocupam a calçada, os colegas trocam afetos embrulhados em papel brilhante e conseguem se enxergar melhor atrás das lentes das máquinas fotográficas.

Alegria

Contato Humano

No palco armado, papai-noel chega de bugue e distribui saquinhos coloridos. O mundo não precisa do Teatro. Essa é a orgiafagia real. Desculpe, Zé Celso. Bonecos vestidos de personagens natalinos substituem a necessidade de trabalhadores-atores. Não precisam parar, não precisam ir ao banheiro, não entram em crise e o melhor: todo mundo adora.

Mais à frente, um protesto contra o aumento do salário dos parlamentares. Uns 30 adolescentes exibem cartazes, sopram apitos e pedem para que os motoristas buzinem. Eles buzinam com a mesma felicidade natalina. Tudo faz parte do mesmo show. No megafone, uma mulher com o rosto pintado grita sua raiva para fora convocando os passantes a participar do protesto. Seus gritos não são muito convidativos. Penso que, no fundo, servem mesmo para expurgar sua frustração por não poder fazer nada. O protesto hoje é uma forma de terapia coletiva. Todos se reúnem, xingam, gritam, aplaudem, cantam, dançam e depois voltam para as suas residências mais leves. Auto-apaziguamento. Todos escolhem o mesmo lugar para protestar, sejam 30 ou 3.000. Esquecem que nesse lugar a profusão de eventos, barulhos e pessoas engole qualquer tipo de manifestação. A Avenida já incorporou a manifestação. Muitos barulhos competem entre si e as pessoas só podem andar olhando para baixo para que não tropecem e percam o rumo no fluxo contínuo da massa.

Barulho atrai barulho.

Muito barulho deixa as pessoas surdas.

Muitas imagens deixam as pessoas cegas.

Muita informação causa tontura, náusea, vômito, dor de cabeça, insônia, dores estomacais, alucinações, perda de apetite.

O senhor de roupas sujas e mal-cheirosas que vendia algodão-doce é arrastado por um quarteirão pelo policial. Ele o encosta debaixo da estrutura de ferro que sustenta o palco que fica suspenso na Avenida patrocinado pelo banco e pelo Estado. Ao pé da estrutura, o policial chama e, prontamente, mais 4 homens de uniforme cinza da polícia chegam para dar apoio. Ambulante ilegal. Ignorando o advogado de óculos que parou cheio do espírito natalino, os policiais confiscam o bastão com algodões-doce coloridos. Nada mais resta para o senhor que pensou que a Avenida repleta de pais com suas crianças poderia ser um bom negócio.

Natal Assaltado

Fica a lição, meu caro senhor maltrapilho: é preciso estar na lei para poder vender qualquer coisa, para poder bloquear a faixa do ônibus e parar o trânsito, para aumentar o próprio salário e assim poder gozar do melhor que o natal oferece.

sábado, 16 de janeiro de 2010

Angústia VI

Andava sem rumo, como sempre fazia, como sabia fazer. Tropeçando na rua de paralelepípedos cinzas soltos. Pensando pela infinitésima vez no absurdo das relações. Quais mulheres realmente tinham mexido com os seus eixos. Com quais ele estava apenas em busca de algo que lhe afastasse da solidão. A profunda e constante solidão. Sua mais fiel companheira, a única, a verdadeira. Lembrou da última paixão que parou de aparecer, sem dar maiores explicações. Apenas desapareceu em uma ligação não atendida. Como elas podem ser cruéis. Quanto mais se dá, mais se quer e então, quando você oferece tudo o que tem, a sua sinceridade e seu coração, escuta o som da guilhotina e elas não têm o menor pudor em te degolar.

A honestidade não parece ser a melhor moeda de troca dessa relação. Quanto mais se tem, mais pobre se é nesse estranho jogo.

Depois que ele se rasgava todo, dilacerava toda a sua verdade e a espalhava na frente delas, elas apenas olhavam para aquilo como se fosse um monte de um incompreensível entulho e ignoravam o que viam. Olhavam de cima a baixo, torciam o nariz e saiam balançando o rabo. “Muito Obrigado, um pouco de consideração seria bem vinda. Um pouco de compreensão e cuidado.”

Ana foi embora levando uma boa parte do seu coração e sua coleção de filmes do David Lynch. Foi para a vida segura de um lar confortável. Só consegue assumir riscos aos finais de semana e nas férias. Riscos controlados, igualmente confortáveis. Dani desapareceu deixando na memória uma promessa não cumprida e o som de um gemido característico. Saiu para o mundo, ela e sua inquietação, ela e tudo o que compartilharam, ela e muito da identidade dele, a sua paixão mais rasgada. Laura o ignorou. Ignora-o em todas as poucas vezes que se vêem. Ela e suas amigas com olhar de peixe morto e narizes que se entortam com uma facilidade de impressionar qualquer contorcionista. Todas vorazes consumidoras da arte-filosofia da moda e seu estilos de vida plastificado, de pronta entrega, embalados em um “conceito” (sic!!!). E Luiza, a primeira, a intocável. Desencontros e enganos. E a vergonha, fruto da ignorância adolescente.

Enquanto andava, pensava nas suas possibilidades. Seria possível ainda achar alguém? Está muito cansado de andar por aí sozinho. Será que isso ainda vai mudar? Depois de tudo o que passou, acha que isso é cada vez mais difícil. As solas do sapato já estão muito gastas. Já estão com buracos que fazem com que se possa ver as meias. Ele tem buracos nos sapatos. Em cima e em baixo. Muitas andanças sem rumo. Muitos pensamentos divagados. Ao som das buzinas e com o aroma da fuligem. Muitas ruas tortas e sem saída. “A morte é sempre uma saída, mas deve dar muito trabalho morrer sem sofrimento ou dor. Não, talvez isso ainda não.” Mas a vida também lhe parece muito difícil. Difícil de ser explicada e entendida. Conseguir chegar a algum lugar.

Agora mesmo, tudo o que queria era um pouco de compreensão e carinho, para não ter que enfrentar o longo e tortuoso caminho de volta sozinho e com a traquéia apertada. Mas isso não podem dar. Querem tudo dele, mas um gesto sincero e espontâneo que o fizesse acreditar que tudo ainda pode dar certo... bem, isso nunca conseguiu; nem dessa vez, provavelmente nunca. O olhar diz tudo. A fuga do olhar diz ainda mais. Há aquelas que escapam olhando no olho, bem pertinho, nariz quase encostando. Mas aquelas que, paradas na sua frente já não estão mais ali, essas são as piores. Faz uma pessoa pensar que a sua existência é ainda mais inútil e que a impossibilidade de um lugar é a única possibilidade.

“É... pra mim já deu. Melhor acabar logo com tudo isso, com todo o desconforto e angústia. Melhor mesmo. De que vale tentar? Querer chegar ‘lá’? ‘Lá’ não dá pra chegar nem em um milhão de anos. É isso, fodam-se todas, foda-se tudo, que eu cansei de me fuder.”

Mas quando seus olhos delirantes encontram outros olhos que pousam no fundo dos seus; olhos que sorriem discretamente de canto de boca, então ele pensa: Parece que sempre que eu tento sair, elas me puxam de volta.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Sexta, Dez pras Dez

Até chegar a sexta-feira. Na sexta-feira os olhos não desviam do relógio, ansiosamente aguardando o esperado horário da saída. Salivam por imaginarem o gostinho da liberdade tão perto. Dois dias inteirinhos para se fazer o que quiser. Na verdade isso é uma mentira, elas não fazem o que querem, mas o que o resto da semana as obriga fazer no fim da semana. Mais compromissos, compras, preparações, tudo pra deixar tudo prontinho na segunda. E assim, no fundo, sexta emenda a segunda-feira, evaporando com os dois dias inúteis entre eles. Mas às 17h30 da sexta-feira ninguém pensa assim, porque os desejos só respondem às coisas que estão próximas a nós, ao que nossos olhos podem ver sem muito esforço de imaginação ou projeção futura. E às 17h50 quase se pode tocar a liberdade, tão densa e pesadamente ela cai do céu junto com o crepúsculo. E ah! 18h01 elas já saem dos prédios de escritório e se aglomeram nas calçadas para dar início ao ritual do fim de semana. O amarelo dourado estoura estupidamente gelado no fundo do pequeno copo de vidro e a espuma transborda, mas ninguém se importa, porque lambendo a beirada aproveita-se tudo, até a última gota. A substância desejada, o elixir do relaxamento, a bebida sagrada feita de sangue dos pobres mortais. Os que bebem são todo exagero. Não daria para ser diferente, depois de uma semana inteira de exageros: muito trabalho, muito cansaço, muito stress, muita propaganda, muita gente, muito trânsito, muita pressa, muito sono, muitas preocupações. Muito que se cura com muito. Não se cura, na verdade só se esquece. E quanto mais dos muitos se acumularam durante a semana, muitas doses mais de esquecimento precisarão ser tomadas na noite fervilhante da sexta-feira para que se possa dormir, finalmente, um sono pesado, o sono dos injustiçados.

Mas antes de chegar ao merecido descanso, é preciso passar pelo purgatório da agitação. Mais pessoas, nas mesas que já se multiplicaram e invadem todos os espaços possíveis. Mais carros que surgem de todos os cantos e entopem a rua já cheia de gente. Os sons se amplificam e se fundem. O copo que quebra, a gargalhada que estoura, o palavrão que explode, o falar que grita, a buzina que rasga, todos se juntam para formar a sinfonia da sexta-feira. A sinfonia do turbilhão e do caos premeditado.

Viro a esquina e tudo me acerta de uma só vez, como um poderoso golpe inesperado.

Casa com essa menina, porque coisa melhor não vai conseguir. Olá, olá, tudo bem com você, gatinha? Ei! Cuidado comigo. Os skatistas pulam para cá e para lá em suas manobras, perdendo dos seus pés os skates que, correndo sozinhos, vão para longe até atingir alguém que passa por sobre a passagem de ranhuras que é o braile para os pés dos cegos. A moça de calças cinza apertada gargalha para o guarda que se mantém esticado dentro do seu uniforme cinza e cada vez que a moça gargalha a calça aperta um pouquinho mais e todo o seu volume transborda na barriga, mas o guarda mantém a vista para cima, só de vez em quando olha para o volume saindo da calça para não perder o hábito. Uma espécie de luz neon verde ilumina os cabelos loiros que ficam verdes da menina que ri e seus dentes estão verdes e ela nem desconfia disso pela forma que sorri para todos os que passam por ela na rua. Dois maços e uma revista são nove reais. Só mais cinqüenta centavos para eu interar dois reais e minha cachaça. Eu quero dar! HAHAHAHA. Daí eu falei pra ele: quem é que veio até aqui por sua causa e depois de chegar aqui é dispensada, não você não entendeu que o cara quer só dois e duzentá então o que eu vou fazer hoje se você não tá a fim de sair? Vou ficar em casa queném um idiotalvez ele quer mais do que aquilo que você está dando. Eu não sei, porque eu já tentei coisas diferentes, mas nada deu certo. Mas isso não é nem um pouco justo. Tenta acender o cigarro, o isqueiro só produz faísca e quando faz fogo, este logo se apaga. A luz do farol se acende. O carro quase não consegue passar, embora o sinal esteja verde pra ele, as pessoas passam como se dissessem: olha aqui! eu já esperei demais a semana inteira, agora é a sua vez, você confortavelmente sentado no seu banco macio pisando em pedais pra cima e para baixo, enquanto eu tenho que gastar minhas solas e tropeçar em tudo quanto é buraco dessa cidade, agora é minha vez, exatamente aqui, exatamente nesse momento, você pode passar por cima de mim e me transformar em lixo de asfalto, mas eu não vou esperar mais, não agora, então é eu contra você, o que você me diz? E o carro espera e a senhora que o guia apenas saiu de casa para fazer a compra no supermercado e apenas por isso ela saiu de carro. Uma reunião de crianças que se acham adultos apenas por beberem e fumarem, um pouco sem jeito, por se agarrarem na rua sem pudor e por vestirem pesadas roupas pretas com cheiro armário. Apesar das caras de mau, suas falas não passam de banalidades. Banalidades e bebidas. É tudo o que as pessoas precisam para sobreviverem em bando. Gritam e provocam quem passa pela rua, mas alguns só olham um olhar perdido para Deus sabe onde e suas caras neutras denunciam que prefeririam estar em outro lugar agora, mas o que se vai fazer, é sexta-feira e essas são as pessoas com quem eu convivo e o que resta é agüentar e torcer para que algo de bom aconteça hoje, algo novo e excitante. E todas as pessoas pensam isso na sexta à noite, mas isso não acontece para a maioria que apenas segue a vida esperando a sexta-feira dos sonhos que nunca chegará porque elas esperam coisas demais e tem coisas que nunca acontecerão. Mas enquanto tudo isso é novo para aqueles que sentam e bebem na calçada, eles vão rindo e falando alto para que toda a cidade escute seus uivos, pois a vida para eles está apenas começando e eles estão sedentos por ter aquilo que todos os outros já não querem mais. Mas eles não sabem disso, ainda. As três amigas apoiadas no balcão dentro do bar olham para todos os lados, disparam seus olhares e decotes para todo transeunte e bêbado e louco, provocando os seus nervos e despertando todo o seu desejo até o momento em que elas irão embora deixando muitos queixos caídos para trás. Deixando todos babando e rindo por isso. Rindo muito por isso. Elas conchavam entre cochichos ao pé do ouvido e risadinhas. Combinam exatamente a hora em que sairão do bar com destino a alguma outra festa que já começou em algum canto da cidade. A hora em que os lobos se distraem um instante para coçar as suas partes quando a lua está brilhando para elas. Uma fuga rápida bem nesse instante e os lobos nunca saberão o que aconteceu. Ô boneca! Vem aqui um pouquinho, deixa eu te falar uma coisa. HÉHÉHÉHÉ. Ô princesa! Senta aqui, eu não vou te morder, eu prometo. A menos que você queira. HAHAHAHAHA. Garçom! Traz mais uma garrafa pras garotas e coloca na minha conta. RIRIRIRIRI. Ai, eu preciso dar uma chegadinha no banheiro, mas eu já volto já. HU-HU-HU-HU. A caminhada cambaleante. Faz força para andar em linha reta. A vontade sempre aperta quando abrimos a porta do banheiro e explode quando abrimos a calça. O jato transparente apenas em breves momentos acerta o buraco da privada, apesar de ser tão grande. O jato forte sempre pega de surpresa aqueles que têm a calça semi-arriada. Até poder controlar essa força, metade da vontade já se foi e agora está espalhada na poça das outras vontades aliviadas que molha os sapatos e um pedaço da barra da calça. AHHHHHHH. De repente o mundo parece um lugar tão bom e cheio de possibilidades. Mas que porra, onde é que foram aquelas três safadinhas? Então, eu acho que no fundo é isso mesmo, sabe. Eu falei pra ele que, assim, não dá pra fazer tudo o que ele quer, sabe, porque eu também preciso fazer as minhas coisas, entende, e isso é muito importante pra mim, né, e parece que ele nem, sabe, se toca. Para. Risca o isqueiro pela 27ª vez que insiste em faiscar apenas. E ela se posiciona contra o vento, a favor do vento, em todas as posições, mas parece que o vento vem de todas as direções. O cigarro já grudou na boca. Ela continua falando e ele não cai. Ai, meu, sei lá vocês dois. Rola uma coisa meio esquisita dele que eu não sei te falar exatamente o que é... A perua avança o sinal vermelho e, na faixa de pedestre, para e grita para fora da janela. Olha a calçada! O da calçada xinga inevitavelmente a Kombi que avançou o farol. Mas segue caminho sem muito esquentar a cabeça. Apressada, a bixinha anda depressa, rebolando o seu quase nenhum quadril e sorrindo para todo mundo que passa e lhe olha. Inda tem que agüenta os viado olhando pra mim direto. Resmunga o pedreiro gesticulando com suas mãos sujas e ajeitando sua camiseta rasgada. E tsssc tsssc tsssc nada do isqueiro funcionar. Você tem um isqueiro pra me emprestar? Não. Brigada. Pergunta praquele cara parado ali ó. Oi, você tem um isqueiro pra me emprestar? Claro que eu tenho. Ainda hoje as pessoas sorriem e se inflam de expectativas com o lance do isqueiro. O rapaz de gravata afrouxada e camisa pra fora da calça larga sorri e encara a garota que só olha para a ponta do cigarro e o isqueiro do rapaz que fez questão de acender o fogo para ela. O fogo queima a ponta, ela diz “brigada” e sai andando no mesmo passo apressado e curto de antes, sem olhar para o rapaz que há 30 metros de distância ainda olha para ela e sorri, mexendo com os pés de um lado pro outro enquanto termina seu cigarro e com a mão esquerda dentro do bolso cutuca a cueca. Da igreja saem pessoas em seus trajes de gala a caminho da festa. Carros grandes com os vidros totalmente escuros perfilados à espera dos seus donos de gravatas apertadas e lenços de lapela com suas esposas em vestidos que brilham, saltos finos que estalam fino ao andar e maquiagem pesada que não consegue esconder as marcas da idade. Na esquina, um homem alto toca um triângulo e balbucia uma cantoria de palavras desencontradas que não chegam a formar um verso e se repetem como se o homem dissesse todos os maiores desatinos que lhe passam pela cabeça aos quatro ventos que se encontram na esquina das duas ruas. E o som do metal rasga o encontro das ruas em um ruído insuportável que nem a caixa de papelão vazia aos seus pés pode mais suportar. E as pessoas passam e olham feio para o homem alto que devolve palavras desafinadas com uma expressão séria no rosto como quem está concentrado para não errar o compasso, mas um triângulo não exige muito compasso ou concentração no movimento, mas ele parece não se importar com isso. O cigarro apagou! QUA-QUA-QUA-QUA. Volta lá e pede praquele cara de novo, acho que ele gostou de você. É, vou sim. Tá amassado esse cigarro, e meio molhado, deixa quieto. Ela não larga o cigarro da mão. Um casal olha o varal cheio com camisetas de temáticas variadas à venda. Não acho que Foucault tenha dito isso, realmente, acredito que é uma interpretação errada da leitura que fazem da sua obra, especialmente quando se referem ao que tipo de coisa que você imaginou? Aquele jogador é muito ruim, não consegue sair com a bola dominada parece com que coisinha mais linda aquela ali, olha só que peitinhos, durinhos e ainda dá pra ver o sutiã! Dá pra ver que o presidente agora se afundou de vez, não bastava aquele monte de denúncias que saíram contra ele na semana passada, hoje saiu uma no jornal, dizendo que esse filme novo foi vaiado e aplaudido em Cannes e que o júri só não premiou como melhor filme por causa do diretor que arrumou uma confusão com batata e carne seca, sabe, aqueles bolinhos que vem de entrada, mas o melhor deles são os pastéis de carne. A fumaça da barraca que vende milho joga um cheiro de pipoca na passagem estreita e encobre os olhares inquisidores dos que vão de lá pra cá. Um carro rasga a avenida com o grito do motor e o grunhido dos passageiros. Mais pessoas vão chegando. Garotas arrumadas e perfumadas, garotos penteados, vestindo casacos de couro com golas altas da moda e calças apertadas. Todos andam rápido com seus olhares leves e sorrisos fáceis. Andam sempre em grupo todos, sempre na direção contrária a minha. Me arranja uma moeda? Só uma moeda! Grita o vagabundo. O homem que já viu isso um milhão de vezes e ainda continua vendo, todas as sextas de todas as semanas por toda a eternidade. Xingando todos que interferem o seu caminho, cuspindo no caminho dos que riem, amaldiçoando os céus por ter falhado na única oportunidade que teve na sua vida, flutuando por sob o concreto das ruas como um messias moderno anunciando que o fim de tudo virá em breve. Resmunga para si palavras balbuciantes que só ele e Deus conseguem entender. Seus olhos de loucura já viram de tudo, seus ouvidos sujos já ouviram todas as estórias que tinham para ouvir e agora ele está farto. Quer apenas um lugar para se sentar e descansar até o dia do juízo final. Mas ainda não, porque ainda é sexta-feira, dez pras dez.

sexta-feira, 3 de julho de 2009

I`m Only Sleeping

- Olha só para essas pessoas. Um bando de gente fazendo nada. Absolutamente nada.
- O que você queria que elas fizessem?
- Alguma coisa.
- Talvez elas já estejam fazendo, isso é bem relativo.
- Não estão. Se estivessem não estariam aqui.
- Você está aqui.
- Eu já fiz coisa demais.
- Hoje?
- Sempre.
- Você está muito amargo.
- Talvez, mas isso não tem nada a ver com o fato de que o mundo está de fato uma bosta. Nada de bom está acontecendo. Não digo isso porque sou uma pessoa negativa ou nostálgica, é apenas uma constatação real, profunda e baseada nos fatos mais instantâneos e irrefutáveis. Você não parece estar muito abalado com isso.
- Eu estou bem tranqüilo com isso tudo. Let it be. Let it be.
- Nem as mulheres estão mais bonitas como já foram. Não se fabrica mais mulheres com aqueles grandes peitos que apontam para o infinito anunciando a doce aurora do prazer. Olhe em volta. Não há nada de bonito para se ver, nem sendo muito generoso ou fazendo muito esforço.
(Nisso ele pega os óculos para poder enxergar melhor e tentar não ser muito injusto com o seu parecer)
- E aquela ali, olha que rosto mais bonito.
- Só o rosto mesmo, porque não tem mais nada para apresentar.
- Dá um tempo, ela é só uma pessoa, não a cura pro câncer. Ela também tá se esforçando como todos nós.
- Pode ser.
- E comparada às amigas, ela até que tá muito bem.
- HAHAHAHAHA.
- Olá, olá.
- Mas essas pessoas nem fazem nada, só ficam reclamando da sorte.
- Mas a sorte é importante.
- Não é não, não é nem 20%.
- 80%!
- 50%
- 50%
- O que importa é o resto.
- O que é o resto?
- Não contar com a sorte.
- Mas daí, você vai contar com o que?
- Com o seu emprego.
- Não dá pra ficar a vida inteira esperando trabalhando até ter uma oportunidade.
- Ninguém quer trabalhar, mas é importante. Todo mundo precisa de dinheiro.
- Prefiro trabalhar em alguma coisa minha. Em algo que acredito.
- Mas tem que fazer alguma coisa, não dá pra ficar por aí, sem trabalho, sem família, sentado na calçada olhando todo mundo passar na sua frente.
- Na Alemanha eles vão até o governo e ganham 400 paus. Eles podem escolher isso, não fazer nada. Daí, com esse dinheiro dá pra comprar comida e birita pra se manter.
- Mas não dá pra viver só com isso.
- O mínimo pra se manter é diferente pra cada um.
- Olha só, um ingresso pra ver um show é uns 120 contos.
- Quantos graus você tem nos óculos?
- ½ em cada olho.
- Mas isso não é nada.
- Mas eu quase não consigo enxergar você.
(Franze a testa e espreme os olhos para demonstrar a dificuldade em enxergar)
- Puxa, não acontece nada de bom como antes costumava acontecer. Olha só a gente: estamos falando há 2 horas sobre coisas que aconteceram meio século atrás.
- E os macacos do ártico?
- Tudo isso aconteceu em 1973. Nesse ano aconteceu de tudo. Os Beatles acabaram, caiu o muro de Berlim e os comunistas fizeram a sua revolução.
- Acho que não foi tudo no mesmo ano.
- Pode ser, mas muita coisa aconteceu por volta desse ano. E olha hoje, todo mundo tentando copiar o que aconteceu nessa época. A música, o corte de cabelo, as roupas.
- Não, hoje eles tão copiando os anos 50.
- Pior. Antes as pessoas queriam ser diferentes, agora todas querem ser iguais. Olha só essa daí.
(Aponta para uma garota com corte de cabelo retrô de pin-up girl)
- Igual a ela eu já vi várias.
- Mas elas não têm a pegada das originais, fica só uma cópia mal feita.
- Os Beatles copiaram o topete de James Dean no começo.
- Todo mundo tem que começar copiando alguém, é assim que funciona.
- Precisa fazer uma coisa igual no começo pra juntar uma grana e depois poder fazer alguma coisa realmente própria depois.
- Até lá, fica todo mundo copiando todo mundo.
- Mas daí eles se cansam e olham para trás.
- Só copiam o velho, tornando-o novo de novo, até todo mundo ficar igual novamente.
- Daí eles criam algo próprio.
- Ou copiam outra década. Por que eu não consigo enxergar nada de bom no que eu vejo hoje?
- Tem os libertinos.
- Mas já faz um tempo, foi nos anos 90.
- Acho que não faz tanto tempo assim.
- E pensar que os fadinhas ficaram conhecidos com aquela música do homem estava pra chegar.
- Eles tinham coisas muito melhor.
- Muuuuuuuuito melhor. Eu queria jogar taco. Andar descalço no asfalto e dar umas tacadas por aí.
- Você andando descalço?! Tá bom.
- Sim! Como eu sempre fiz.
- Tá bom...
- Saudade de quando eles gravavam tudo em um só canal. Hoje o cara grava em 60 uma guitarra e bateria. Pra não fazer nada de bom, só ficar tum-tum-tum-tum.
- É um outro conceito.
- Esses óculos estão muito sujos, não dá pra ver nada com eles.
(Tira os óculos e esfrega na camisa suja)
- Mas você só tem ½ grau, não precisa deles.
- Mas daí eu tenho que fazer assim, só pra te enxergar.
(Franze a testa e espreme os olhos uma vez mais)
- Tem coisa boa hoje também, só não tem acontecendo nesse exato instante, mas até ano passado tinha.
- Não vejo nada de bom nem hoje, nem um ano atrás, nem 10 anos atrás.
- É por que essa merda de eletropop tá desviando a atenção. Até os macacos do ártico ficaram meio eletropop. Mas vão surgir outros.
- Nem as que estão passando na rua são bonitas. Não vi nenhuma mulher bonita hoje. Só essa da revista.
- É que ela é paga pra ser bonita.
- Bom, foi um dinheiro bem gasto então. Vou levar pra dar uma volta.
(Põe os óculos e levanta)
- Você vai colocar os óculos só pra enxergar o caminho até o banheiro?
- Mas não dá pra ver nada, eles estão sujos.
(Quando volta, está sem a revista, sem os óculos e com um olho já fechado)

domingo, 7 de junho de 2009

amanhecendo

I

Acordo.
Tenho aquela sensação de quem acabou de dormir por mais tempo do que consiga se lembrar. A última vez que eu olhei para o relógio eram 10:42. Virei e dormi novamente. O barulho da construção na rua me acordou dessa vez. As britadeiras parecem que entram na minha cabeça e martelam com força e me jogam pra fora da cama e vão me empurrando em meu estado de semi-sonolência, balanço, balanço mas não caio, tropeço e me apoio no armário, topada no dedinho do pé esquerdo, erro a maçaneta da porta, acerto da segunda vez.
Luz.
Sem conseguir enxergar nada vou para o banheiro instintivamente, inconscientemente, agarrando-me a tudo com que possa me segurar e guiar em direção ao alívio imediato. A latrina. Quando termino de me aliviar estou enxergando melhor, mas ainda não é nítido. Meu mundo aparece em distorções e nebulosos espaços brancos entre os azuis dos ladrilhos do banheiro, do vermelho do chão, do colorido dos tapetes. Eu. No espelho sou apenas um borrão. No espelho meus olhos estão embaçados, meus olhos que mal conseguem olhar para o espelho. Abro o espelho e dentro dele alcanço minha escova de dente. Hábito que não nunca mudará. O movimento macio mecânico repetido e sem pressa me faz ir despertando aos poucos. A água da torneira refresca meus lábios, molha meus olhos, enxágua minha boca. Erro a passada da escovada e escovo minha barba e escovo minha camiseta branca. Um dia ela me perguntou se eu pintava a barba, porque daquela cor ela nunca tinha visto. Eu disse que não, que não fazia o menor sentido um homem pintar a barba, que isso deveria ser a maior estupidez que um homem poderia fazer. – E a guerra? – Bom, isso também. – E o suicídio. – Bem, eu não julgo ninguém, cada um age de acordo com a sua vontade e o seu íntimo desejo. Ela sempre arrumava um jeito de me contrariar. A água lava o resto de pasta da minha camiseta, e a camiseta gruda na minha pele. Não está frio, mas sinto frio. Saio do banheiro.
Sento.
O cheiro de leite é agradável. Leite que fervilha na leiteira e depois vai direto para a caneca. Costumava coar, mas ela disse que era muita frescura. Hábitos podem mudar com o tempo. O pão molha no leite que serve a boca. Quente. Ponho mais café. Tenho tomado mais café nesses últimos tempos, mas parece não adiantar. Cada vez me sinto mais cansado, mais sonolento, mais distraído, mais moribundo, mas fora da realidade.
Depressa.
Levanto, me dispo, me limpo, me visto, penteio, arrumo, cabelo, barba, dente, pastas, papéis, maleta, carteira, gravata, sapato, celular, lenço, água, chave, corredor, elevador, portão de vidro, portão de grade, rua. Ainda que você me pergunte mil vezes não conseguirei responder o porquê da pasta, da gravata, se não vou ao trabalho, se não vou a lugar nenhum. Quando acordava cedo, há uns 2 meses atrás, fazia sentido, mas quem tem como rotina sair depois das 13 horas de casa, não precisa de terno e gravata. Não nessas condições. Isso não é mais hábito, é qualquer coisa indefinível.
Antes.
Quando era verão e eu saia cedo de terno e gravata, não via motivo lógico para aquilo. Enfrentar um trânsito de 1 hora e meia no calor queimante da manhã pra poder chegar no ar condicionado do escritório, tirar o paletó e esperar que o vento gelado secasse a camisa suada nas costas, na barriga e no sovaco. Sentado, com sono, já nervoso e sem muito ânimo, de frente pra tela do computador se tentava ganhar o dia. Mais um dia. Passava o dia inteiro na frente do computador, quase não falava com ninguém. O email resolvia as necessidades de conversa e de ordem com quem quer que fosse. Não faria diferença ir só de camisa, com bermuda e chinelo ao trabalho. Ninguém nunca me via abaixo da cintura, as partes cobertas pela mesa, quando muito me via. No meu cubículo, muitas vezes só era possível ver o topo da minha cabeça, meu cocuruto. Ninguém nunca dava bom dia boa tarde boa noite para o meu cocuruto. Então ele também não respondia para ninguém. E assim era o dia. Chegando antes de todo mundo chegar, indo embora depois de todo mundo ter saído. Também não via o porteiro que sempre ficava de cabeça baixa, olhando fixo para algum monitor, ou revista, ou jornal. Eu com minha pasta, minha gravata, minha bermuda, meu chinelo e meu cocuruto, deslizando pra dentro e pra fora daquela porta de entrada todo o dia, exceto finais de semana e feriados, sem ninguém perceber, sem ninguém escutar, por vários anos.
Agora.
Sair de casa não tinha mais a razão prática da vida para se ganhar, da batalha diária por sustento, pelo salário, abrigo e comida. Saia por uma necessidade muito mais forte. Muito anterior às necessidades básicas. Minha necessidade primitiva. Necessidade do sentido. Necessidade de encontrar algo que fizesse sentido, que me fizesse ver o sentido, sentir o sentido, entender o sentido e viver pelo sentido ou morrer por ele. Então saio, como estou habituado a sair, com meu uniforme de muitos anos que agora estão surrados. Com minha maleta sempre à mão, mesmo que eu não carregue nada dentro, pelo menos ela serve para colocar as chaves e evitar que fiquem chacoalhando no meu bolso. Meus sapatos já chegaram a apertar os meus pés, já foram muito incômodos, mas agora, não sinto mais dor, não sinto mais apertar os ossos do pé, raspar os calcanhares e esmagar os dedos. Já estou calejado também nos pés. É isso que a vida faz, e as roupas fazem, e os instrumentos fazem, e os trabalhos fazem, e as barras de ferro dos transportes públicos fazem, e os sapatos fazem: te deixam calejados. Depois de um tempo você já não sente mais nada e então está preparado. Pronto pra desfrutar a vida. Alguém calejado que nem eu, nem se importa mais com sapatos apertados, camisas que apertam o pescoço, prendem os braços e paletós que, como camisas de forças, limitam os seus movimentos. Como são estranhos os paletós. São feitos para trabalhar, mas que tipo de trabalho é esse que precisa que a pessoa esteja limitada nos seus movimentos? Acho que a cada dia que passa, eles endurecem mais esse troço. Antes o sujeito não podia levantar seus braços acima dos ombros, depois já não consegue mais erguê-los para muito além de perto do corpo, até ficar completamente impossibilitado. Tudo que irá conseguir é mexer o indicador para dar o clique no mouse, escrever não será mais necessário, nem digitar, só cliques e mais cliques no mouse. A linguagem será possibilitada apenas pelos cliques. E então clique a pessoa consegue clique se comunicar clique com quem quer que seja clique não precisando mais clique usar nenhuma língua tradicional clique expressão verbal clique ou palavra. A linguagem finalmente será universal não-verbal apalavral prática e eficiente: linguagem dos sinais. Na rapidez de um clique. Da tela do meu computador eu me conecto com alguém do Azerbaijão somente por linguagens de sinal e cliques. Diálogos através de smiles, debates através de símbolos de trânsito, tratados inteiros apenas por sinais. A verdadeira globalização universalização da comunicação. Preso à tela do meu computador pelas minhas roupas que não permitem que eu me movimente, eu poderei me comunicar com todo e qualquer um dos 20 bilhões de indivíduos, um mundo todo cheio de loucos em suas camisas de força, entretidos pelas constantes inovações do mundo virtual, tranqüilos e sem preocupações. Um futuro feliz.
Ando.
Pela calçada de pedregulhos, minhas solas gastas começam a sentir meu pé sentindo cada vez mais os pedregulhos. Com minha maleta na mão não tenho pressa. Não tenho hora marcada para entrar, sair, comer, tomar água, café, mijar, cagar. Com minha maleta na mão, caminho tranquilamente pelas ruas. As pessoas passam por mim, sempre apressadas, com suas caras cansadas e bocas ressecadas e olheiras profundas, pálidas e amarelas ao mesmo tempo. Eu não me importo. Não mais. Agora eu sou apenas um observador do delírio cotidiano. Meus olhos são microscópios, meus ouvidos radares, prontos para captar tudo. Toda a loucura. Estou começando a me libertar.

domingo, 10 de maio de 2009

Atrás da porta

Como eu quis abrir aquela porta. Aquela única porta que me levaria para vocês.
Podia ouvir vocês duas conversando, sentadas na escada do corredor.
Uma conversa baixa que o eco do corredor transformava em um ruído alto indefinível.
Eu queria saber sobre o que conversavam.
Sempre quis saber isso.
Seria sobre a impossibilidade do ser? Sobre a inexistência da felicidade autêntica? Sobre a eterna busca do amor verdadeiro? Sobre o sufocamento da existência?
Ou alguma outra teoria maluca de vocês?
Na minha cabeça imaginei como vocês estariam. Uma do lado da outra, ombros levemente encostados, pés virados para o centro, cotovelos apoiados nas pernas. Lindas.

Então alguém me chamou do lado de dentro e eu as perdi para sempre.
No apartamento estávamos apenas matando o tempo.
Todos nós e a outra.
Nunca fui apaixonado pela outra.
Foi apenas o desespero. Foi um momento. Foi por não saber o que fazer.
Não foi especial, como teria sido com vocês. Estraguei tudo, eu pensei.
E agora estamos tão distantes.
Vocês desapareceram. Como disseram que fariam.
Não passamos de ilustres desconhecidos. Nós três.
Um momento, e tudo muda. Tudo se transforma para sempre.

Fecho os olhos e me transporto para aquele momento.
Aquele exato instante.
Eu estou com meu ouvido encostado na porta e escuto suas vozes do lado de fora.
Eu levo a mão à fechadura. Seguro a chave e giro.
Eu estava apaixonado por vocês.
Estupidamente apaixonado.
E eu queria tanto dizer que tudo ia ficar bem, agora que tínhamos uns aos outros.
Que não tínhamos que sofrer mais por que havíamos nos encontrado nessa vida.
E isso era uma tremenda de uma sorte.

Agora estou aqui, escutando Stooges e escrevendo tudo isso.
Lembra quando eles eram a coisa mais genial que já tínhamos ouvido?
Lembra quando queríamos ser como o Iggy Pop? Inconseqüente até a última gota do espírito.
E nos esforçávamos para chegar lá.
Tento voltar no tempo com tudo isso, eu acho. Para uma época onde a esperança era apenas uma criança brincalhona. Onde tudo poderia ser feito. Onde tudo era novo e a vida tinha sabor de vinho tinto.
Gostaria de voltar no tempo e mudar tudo. Sempre é assim com os meus erros.
Esse negócio de não olhar para trás e não se arrepender dos erros é pura merda. Bobagem rasteira de algum idiota que quer se passar por alguém melhor do que ele realmente é.

Uma porta.
Eu a abriria e veria vocês duas, sentadinhas, conversando. Lindas.
Então, eu iria até vocês. Eu me colocaria entre as duas.
Meus braços quentes esquentariam os seus braços. Os pelos se arrepiariam.
Acariciaria os seus cabelos. Com as costas da mão sentiria a doce pele das suas faces.
Olharia nos seus olhos.
Registraria esse momento na minha memória para sempre.
E pediria a toda a sorte dos céus que de lá ninguém pudesse me tirar. Nunca.

Estou com meus olhos fechados.
Não desejo abri-los agora.

domingo, 19 de abril de 2009

Meu único cãozinho

Em toda a minha vida eu só tive um único animal de estimação. Um cãozinho. Era um cachorro de
rua, ou pelo menos foi na rua que eu o encontrei. Parecia muito novo, de um ano ou um pouco mais, não sei se isso é muito novo para um cachorro, não lembro direito como funciona os esquemas de idade de cachorro (acho que é multiplicado por 7?). De qualquer forma, ele, pequeno e elétrico, perambulava nos arredores da casa da minha avó no interior. Seu pêlo era branco e bem macio, com algumas manchas escuras pelo corpo, tinha um olhar alegre e puro. De cara nós nos entendemos muito bem. O cãozinho se mostrou muito simpático e afetivo e eu, um garotinho que precisa de alguma simpatia e afeto, logo o escolhi como meu predileto. Adotei-o como qualquer coisa que um ser pode ser para outro ser: amigo? filho? pai? um amor?
Carreguei-o no meu colo durante toda a viagem até a cidade, ele veio quietinho e ainda todo afetuoso. Senti que ele me entendia, parecia-se comigo, ao seu modo. Eu havia encontrado alguém que pudesse me entender e que eu entendia. Meu pai o deixou na casa da minha outra avó, já na cidade. Era uma boa casa, com um grande quintal de concreto cinza claro e muitas plantas, cercado por muros de tijolos quase vermelhos. Lá ele teria muito mais espaço para cachorrear do que se tivesse ficado no nosso apertado apartamento. Isso foi num domingo, no fim da tarde. Durante toda a semana eu não o vi. Só iria vê-lo de novo no próximo sábado. Estava muito ansioso, esse cachorrinho era realmente legal, despertava algo em mim que me era estranho e excitante. Naquele ponto eu buscava alguma identificação, pertencer e ter pertences, não objetos, mas vida, qualquer coisa que reagisse espontaneamente na minha frente. Algo que me conectasse com esse mundo estranho. Sempre busquei por isso e apenas isso. Minha vida toda seria uma eterna e cansável busca por isso.
A porta do quintal se abre e eu dou de cara com o pequeno, meu pequeno, aquilo que representava o que poderia haver de bom e genuíno entre todas as coisas, entre a vida a seguir, já devidamente determinada pelas regras a obedecer e certezas a se aceitar. O acordo foi que o cãozinho seria meu, todos poderiam brincar com ele mas, no fim das contas, quando tivessem que ligá-lo a alguma pessoa, quando tivesse que dizer “esse é o cachorro do fulano”; bem, esse fulano seria eu.
Estava muito feliz e ansioso, se tivesse um rabo estaria abanando-o loucamente como estava o pequeno. Eu, sorrindo, abaixei e ele, sorrindo, veio correndo em minha direção. Ele tinha um belo par de unhas. Estranho essas garras desenvolvidas em um cachorro tão pequeno. Aquelas unhas afiadas arranharam os meus joelhos de um modo como eles nunca haviam sido arranhados. Não estava esperando por isso. Realmente não esperava sentir aquela dor naquele momento. Eu estava me sentindo tão bem, uma sensação realmente boa e, de repente, aquela dor não prevista. Não prevista. Aquilo me deixou muito assustado. Antes que eu pudesse ter o cãozinho em minhas mãos, antes mesmo que eu pudesse sentir com a ponta dos meus dedos os fios dos seus pêlos, sentir que, enquanto durasse aquele momento, tudo estaria bem, antes de tudo isso, decretei sua sentença. A sentença do meu cachorro seria a morte. Pelo menos a morte para mim, já que não poderia mais vê-lo de jeito nenhum. Não poderia suportar a idéia que alguém como ele pudesse me machucar. Eu pensava em como ele pudera fazer aquilo, daquela forma, a mim. Não tinha sentido, depois de tudo que fiz por ele.
Sempre quando eu baixo minha guarda alguém me arranha de uma maneira inesperada. Como com o cão, no entanto, esse arranhado muitas vezes é acidental. Mas como diabos eu vou saber disso? Como vou saber se por detrás de uma figura doce não está um ser perverso que deseja causar a dor alheia? Como saber das intenções nunca totalmente explicitadas. Desentendimentos. Meu pai livrou-se do bicho na manhã seguinte. Não me senti bem com aquilo. Ainda pensava muito nele. Não entendi muito bem tudo aquilo. Não consegui digerir a coisa toda. Justo a mim? Senti-me traído, apunhalado pelas costas, dono de uma dor profunda que me apertava forte o peito. Nunca mais teria outro cãozinho ou animal qualquer.

O drama dos lampejos condicionados

Por que sou tão preguiçoso? Por que não realizo lampejos criativos objetivados, ou seja, por que não materializo meus lampejos criativos? Eu tenho os lampejos, sim, mas não faço nada para guardá-los e, como a memória não boa, eles se vão, como um pensamento fugidio, que de fato são. Por que não aproveito esses momentos e faço algo para salvá-los. Puta que o pariu por que da culpa?
Na escola, eu gostava muito das aulas de redação. Tinha um horário especial, previamente marcado, um tempo de duração estipulado, onde todos os meus lampejos criativos podiam ser objetivados. Agora, uma constatação foda: normalmente eles não vinham com a mesma intensidade – esse parece ser o drama dos lampejos, não tem hora marcada, não avisam – mas mesmo assim, eu me sentia realizado, de alguma forma. Parece que nessa programação criativa, nesse momento de criação monitorado, eu conseguia produzir alguma coisa. Maldito condicionamento. Regras e mais regras. Adoro mal dizê-las, mas quando elas funcionam... ah o que se vai fazer.Hoje, sem os momentos pré-agendados, não sei quando e onde devo escrever. Parece que o sistema educacional operário foi realmente efetivo para a minha criação. Só objetivo minha criatividade em oportunidades previamente acordadas, em espaços tacitamente pré-determinados para tais criações: salas de aulas; escritórios; e apenas nos momentos que me é designado fazê-lo. Sempre a mando de alguém ou para alguém. Matam a espontaneidade da LIVRE criação desde o início,... ou será que eu não sei ser espontâneo?

Qual é o cheiro de uma pessoa queimando?

Para cremar uma pessoa, é necessário um fogo intenso e contínuo. Como toda matéria de origem animal, a pessoa não é inflamável. O fogo a queima, mas uma simples chama não desperta uma labareda no corpo de uma pessoa. É preciso trabalho e persistência até depois da morte. Fogo laborioso desde as extremidades e partes mais frágeis até os miolos, partes rígidas e cheias de resistências e surpresas.
Por isso o caixão percorre a esteira fornalha adentro e ali ele fica por uns bons minutos. A boca da fornalha se fecha e a única saída da fumaça é pela chaminé. O fogo persistente consome caixão e pessoa como um só, cinzas indissociáveis, madeira e carne, ossos e pregos, fluidos. Pó único e escuro ao final. Certeza de que fogo impiedoso transformou toda a grandeza e complexidade em um único elemento: cinzas.
A carne animal tem um cheiro característico que identificamos quando nos aproximamos do churrasco. Dependendo do preparo dessa carne, ela terá um cheiro mais acentuado ou não, em função de algum condimento ou tempero. Os elementos que o fogo se utiliza para existir: madeira, fósforo, carvão, papel, ajudam a revelar o cheiro do fogo, também esse forte e característico. Sabemos que algum objeto pega fogo não muito longe do incêndio, graças à propagação da fumaça.
Numa cerimônia de cremação não temos acesso à fumaça, ela é direcionada para cima e para longe. Temos acesso, ao término, às cinzas, mas cinzas são cinzas e cheiram à cinzas e isso é tudo.Qual o cheiro de uma pessoa queimando?

18:35

Dez minutos sem ter o que fazer. Dez minutos sem ter. Dez minutos. Dez, minutos sem ter o que fazer. O que fazer em dez minutos. Fingir que faço alguma coisa em dez minutos é fingir que faço alguma coisa. Se fingir que faço em dez minutos, posso fingir que faço em meia hora, uma hora inteira com muita certeza. Fingir duas, três, quatro. Fingir por muito tempo. Fingir por tanto tempo. Fingir por tempo demais. Fingir, portanto, o tempo todo. Todo o tempo fingindo. Só saber fingir. Fingir pra enganar o tempo, enganando o tempo fingindo. E fingir mais. Faltam só cinco agora. Cinco minutos pra se fingir. Cinco minutos e então nada mais. Cinco minutos e sair. Como passa o tempo quando temos alguma coisa pra fazer enquanto fingimos. Já foram mais dois; agora só faltam três. Dois. Um. E agora sair. Sair para quê? Sair para fingir. Tudo de novo.