domingo, 7 de junho de 2009

amanhecendo

I

Acordo.
Tenho aquela sensação de quem acabou de dormir por mais tempo do que consiga se lembrar. A última vez que eu olhei para o relógio eram 10:42. Virei e dormi novamente. O barulho da construção na rua me acordou dessa vez. As britadeiras parecem que entram na minha cabeça e martelam com força e me jogam pra fora da cama e vão me empurrando em meu estado de semi-sonolência, balanço, balanço mas não caio, tropeço e me apoio no armário, topada no dedinho do pé esquerdo, erro a maçaneta da porta, acerto da segunda vez.
Luz.
Sem conseguir enxergar nada vou para o banheiro instintivamente, inconscientemente, agarrando-me a tudo com que possa me segurar e guiar em direção ao alívio imediato. A latrina. Quando termino de me aliviar estou enxergando melhor, mas ainda não é nítido. Meu mundo aparece em distorções e nebulosos espaços brancos entre os azuis dos ladrilhos do banheiro, do vermelho do chão, do colorido dos tapetes. Eu. No espelho sou apenas um borrão. No espelho meus olhos estão embaçados, meus olhos que mal conseguem olhar para o espelho. Abro o espelho e dentro dele alcanço minha escova de dente. Hábito que não nunca mudará. O movimento macio mecânico repetido e sem pressa me faz ir despertando aos poucos. A água da torneira refresca meus lábios, molha meus olhos, enxágua minha boca. Erro a passada da escovada e escovo minha barba e escovo minha camiseta branca. Um dia ela me perguntou se eu pintava a barba, porque daquela cor ela nunca tinha visto. Eu disse que não, que não fazia o menor sentido um homem pintar a barba, que isso deveria ser a maior estupidez que um homem poderia fazer. – E a guerra? – Bom, isso também. – E o suicídio. – Bem, eu não julgo ninguém, cada um age de acordo com a sua vontade e o seu íntimo desejo. Ela sempre arrumava um jeito de me contrariar. A água lava o resto de pasta da minha camiseta, e a camiseta gruda na minha pele. Não está frio, mas sinto frio. Saio do banheiro.
Sento.
O cheiro de leite é agradável. Leite que fervilha na leiteira e depois vai direto para a caneca. Costumava coar, mas ela disse que era muita frescura. Hábitos podem mudar com o tempo. O pão molha no leite que serve a boca. Quente. Ponho mais café. Tenho tomado mais café nesses últimos tempos, mas parece não adiantar. Cada vez me sinto mais cansado, mais sonolento, mais distraído, mais moribundo, mas fora da realidade.
Depressa.
Levanto, me dispo, me limpo, me visto, penteio, arrumo, cabelo, barba, dente, pastas, papéis, maleta, carteira, gravata, sapato, celular, lenço, água, chave, corredor, elevador, portão de vidro, portão de grade, rua. Ainda que você me pergunte mil vezes não conseguirei responder o porquê da pasta, da gravata, se não vou ao trabalho, se não vou a lugar nenhum. Quando acordava cedo, há uns 2 meses atrás, fazia sentido, mas quem tem como rotina sair depois das 13 horas de casa, não precisa de terno e gravata. Não nessas condições. Isso não é mais hábito, é qualquer coisa indefinível.
Antes.
Quando era verão e eu saia cedo de terno e gravata, não via motivo lógico para aquilo. Enfrentar um trânsito de 1 hora e meia no calor queimante da manhã pra poder chegar no ar condicionado do escritório, tirar o paletó e esperar que o vento gelado secasse a camisa suada nas costas, na barriga e no sovaco. Sentado, com sono, já nervoso e sem muito ânimo, de frente pra tela do computador se tentava ganhar o dia. Mais um dia. Passava o dia inteiro na frente do computador, quase não falava com ninguém. O email resolvia as necessidades de conversa e de ordem com quem quer que fosse. Não faria diferença ir só de camisa, com bermuda e chinelo ao trabalho. Ninguém nunca me via abaixo da cintura, as partes cobertas pela mesa, quando muito me via. No meu cubículo, muitas vezes só era possível ver o topo da minha cabeça, meu cocuruto. Ninguém nunca dava bom dia boa tarde boa noite para o meu cocuruto. Então ele também não respondia para ninguém. E assim era o dia. Chegando antes de todo mundo chegar, indo embora depois de todo mundo ter saído. Também não via o porteiro que sempre ficava de cabeça baixa, olhando fixo para algum monitor, ou revista, ou jornal. Eu com minha pasta, minha gravata, minha bermuda, meu chinelo e meu cocuruto, deslizando pra dentro e pra fora daquela porta de entrada todo o dia, exceto finais de semana e feriados, sem ninguém perceber, sem ninguém escutar, por vários anos.
Agora.
Sair de casa não tinha mais a razão prática da vida para se ganhar, da batalha diária por sustento, pelo salário, abrigo e comida. Saia por uma necessidade muito mais forte. Muito anterior às necessidades básicas. Minha necessidade primitiva. Necessidade do sentido. Necessidade de encontrar algo que fizesse sentido, que me fizesse ver o sentido, sentir o sentido, entender o sentido e viver pelo sentido ou morrer por ele. Então saio, como estou habituado a sair, com meu uniforme de muitos anos que agora estão surrados. Com minha maleta sempre à mão, mesmo que eu não carregue nada dentro, pelo menos ela serve para colocar as chaves e evitar que fiquem chacoalhando no meu bolso. Meus sapatos já chegaram a apertar os meus pés, já foram muito incômodos, mas agora, não sinto mais dor, não sinto mais apertar os ossos do pé, raspar os calcanhares e esmagar os dedos. Já estou calejado também nos pés. É isso que a vida faz, e as roupas fazem, e os instrumentos fazem, e os trabalhos fazem, e as barras de ferro dos transportes públicos fazem, e os sapatos fazem: te deixam calejados. Depois de um tempo você já não sente mais nada e então está preparado. Pronto pra desfrutar a vida. Alguém calejado que nem eu, nem se importa mais com sapatos apertados, camisas que apertam o pescoço, prendem os braços e paletós que, como camisas de forças, limitam os seus movimentos. Como são estranhos os paletós. São feitos para trabalhar, mas que tipo de trabalho é esse que precisa que a pessoa esteja limitada nos seus movimentos? Acho que a cada dia que passa, eles endurecem mais esse troço. Antes o sujeito não podia levantar seus braços acima dos ombros, depois já não consegue mais erguê-los para muito além de perto do corpo, até ficar completamente impossibilitado. Tudo que irá conseguir é mexer o indicador para dar o clique no mouse, escrever não será mais necessário, nem digitar, só cliques e mais cliques no mouse. A linguagem será possibilitada apenas pelos cliques. E então clique a pessoa consegue clique se comunicar clique com quem quer que seja clique não precisando mais clique usar nenhuma língua tradicional clique expressão verbal clique ou palavra. A linguagem finalmente será universal não-verbal apalavral prática e eficiente: linguagem dos sinais. Na rapidez de um clique. Da tela do meu computador eu me conecto com alguém do Azerbaijão somente por linguagens de sinal e cliques. Diálogos através de smiles, debates através de símbolos de trânsito, tratados inteiros apenas por sinais. A verdadeira globalização universalização da comunicação. Preso à tela do meu computador pelas minhas roupas que não permitem que eu me movimente, eu poderei me comunicar com todo e qualquer um dos 20 bilhões de indivíduos, um mundo todo cheio de loucos em suas camisas de força, entretidos pelas constantes inovações do mundo virtual, tranqüilos e sem preocupações. Um futuro feliz.
Ando.
Pela calçada de pedregulhos, minhas solas gastas começam a sentir meu pé sentindo cada vez mais os pedregulhos. Com minha maleta na mão não tenho pressa. Não tenho hora marcada para entrar, sair, comer, tomar água, café, mijar, cagar. Com minha maleta na mão, caminho tranquilamente pelas ruas. As pessoas passam por mim, sempre apressadas, com suas caras cansadas e bocas ressecadas e olheiras profundas, pálidas e amarelas ao mesmo tempo. Eu não me importo. Não mais. Agora eu sou apenas um observador do delírio cotidiano. Meus olhos são microscópios, meus ouvidos radares, prontos para captar tudo. Toda a loucura. Estou começando a me libertar.

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